quarta-feira, 7 de setembro de 2011

RESENHA: VOCÊ QUER MESMO SER AVALIADO – JACQUES-ALAIN MILLER e JEAN-CLAUDE MILNER


Miller, Jacques Alain.  Você quer mesmo ser avaliado?: entrevistas sobre uma máquina de impostura/ Jacques-Alain Miller e Jean-Claude Milner; tradução de Vera Lopes Besset. – Barueri, São Paulo:Manolo, 2006. – (Série lacaniana).

            O livro “Você quer mesmo ser avaliado?” é fruto de duas entrevistas/palestras entre os dois autores, realizadas em dezembro de 2003 em Paris. Tomando como pretexto a proposta do governo francês de avaliar os trabalhadores da saúde mental, esses dois autores, um psicanalista e outro filósofo decidem pensar e questionar sobre o sistema de avaliação que vai sendo implantado em toda a sociedade atualmente. A obra se divide em um prefácio do psicanalista brasileiro Jorge Forbes e dois capítulos, o primeiro com a entrevista de Jean-Claude Milner e a outro com Jacques-Alain Miller. A discussão se complementa entre os dois.
            No primeiro capitulo Miller começa apresentando o colega filósofo e explicando o porquê da escolha do tema avaliação para a discussão. Ele considera que a proposta de aprovação da emenda Accoyer era um bom incentivo para se parar e questionar o tema. Milner inicia sua palestra falando sobre sua dúvida de como ficaria a profissão dos que lidam com o malviver, os problemas mentais após a aprovação da emenda que os queria avaliar. Como avaliar os resultados desses profissionais? Essa era uma questão colocada e que o governo não tinha explicado, preocupado que estava em aplicar o seu paradigma de problema-solução.
            Esse é o primeiro ponto analisado pelo filósofo. No mundo moderno qualquer suposta anormalidade, ou queixa da sociedade, é colocada como um problema, e dessa forma, surge a necessidade de uma solução.  No caso em questão, a solução apontada era a avaliação.  A boa solução é vista pela sociedade quando algo substitui o problema e preserva a situação anterior e o restante da sociedade. A avaliação faz isso. Ela substitui “a avaliação avaliadora pela coisa avaliada”.  O ser avaliado passa para outra esfera, ele pode ser comparado com outros, e assim sua individualidade e especificidade é deixada de lado. Essa percepção é denominada pelo autor do hiperparadigma da equivalência.
            Essa equivalência no caso da França era marcada pelo contrato. As universidades assinaram acordos de financiamento e de organização com o governo, e esses contratos resultavam em avaliações. Ou seja, para saber como as verbas estavam sendo utilizadas, o governo avaliava as universidades. A grande questão jurídica colocada é que o contrato engessa as pessoas, pois só permite que seja feito o que está estipulado.
            Essa é a diferença das democracias que se organizam em contratos e as que se organizam na lei. As que estão debaixo da lei sabem que tudo o que não é proibido, é permitido. Já em uma sociedade baseada no contrato, o que não é expressamente estipulado não vale. Daí o risco desse sistema de avaliação que está condicionado ao contrato, ele acaba por condicionar o profissional avaliado às proposições estabelecidas, e qualquer ação fora disso pode ser vista como um descumprimento da regra e resultar em punição.
            Um exemplo dessa crescente onda de valoração da relação contratual é a abertura de qualquer tipo de associação, que fica tão presa à definição dos motivos de sua existência, que precisa de um contrato enorme para dar conta de todas as possibilidades de situações. Daí a necessidade cada vez maior de advogados, para que as partes consigam estabelecer contratos que não tragam prejuízo a elas. Essa é uma das criticas a essa sociedade baseada no contrato e não na lei.
            A se confiar na autonomia das partes no estabelecimento dos contratos, corre-se um sério risco de se manter as injustiças, já que não há uma igualdade real de negociação dessas partes. A mais forte sempre absorve a mais valia, na linguagem do velho Marx. Essa situação gerou na modernidade um mal-estar, fruto do endeusamento da técnica como solução para todo tipo de problema. E a técnica avaliadora aparece como um mecanismo para cumprimento desse objetivo.
            Os autores iniciam um debate mostrando que é justamente devido a todos esses fatores que os trabalhadores da área de saúde mental a não aceitar a avaliação proposta pelo governo. Apesar da suposta cientificidade na avaliação, ela não é científica. Não dá para se mensurar as características individuais em uma avaliação e comparar com a maioria. Portanto, essa compreensão própria do mundo atual de que os que se saem melhor em uma avaliação são os melhores não condiz com o real, justamente devido a dificuldade de se analisar isso.
            No segundo capítulo, Jean-Claude Milner inicia sua palestra retomando as questões relativas a avaliação. Ao passar pela avaliação, a idéia é que o sujeito sai diferente dela. Ele entra em um estado primitivo, indeterminado e ao sair ele sai desse estado selvagem para um  estado mensurado, carimbado e...evoluído. Isso é claramente um sofismo.
            Outra ponto importante é que o avaliado precisa consentir em ser avaliado, dentro dessa perspectiva de contrato. Na verdade, somos seduzidos com o discurso da avaliação, e um dos cantos da sereia é que todos participaram, portanto, nós devemos participar. Esse processo é perverso porque nos leva a sentir necessidade de ser avaliado, pois essa é apontada como a única forma de ter significado diante dos outros. O problema é que depois de concordar em ser avaliado, estaremos concordando com o resultado, e teremos que reconhecer a nossa suposta inferioridade diante dos outros. O contrato nos obrigará a concorda que caso não consigamos nosso lugar ao sol, será fruto de nossa incompetência.
            O processo de avaliação se caracteriza pelo avaliador chegando como alguém que nada sabe para perceber o que sabemos. Após ele absorver nossos conhecimentos e questionamentos, ele os usa para justificar o discurso oficial, nos fazendo nos ver nesse todo universal. Aqui o autor compara o papel do avaliador com o do advogado, que faz isso ao representar a vontade de seus clientes. Entretanto, o avaliador não interpreta simplesmente o avaliado, ele se apropria do resultado da avaliação para justificar a manutenção de uma estrutura de poder.
            Outra característica da avaliação é que ela só faz sentido diante da comparação. E a comparação serve para hierarquizar as pessoas. Para apontar quem é inferior ou não conseguiu cumprir os objetivos propostos, daí sua perversidade ao ser implantada dessa maneira. Isso nos mostra como o Estado liberal atual lida com os problemas que surgem em nossa sociedade, responsabilizando os indivíduos por eles, e não assumindo a necessidade de ter um papel mais atuante na criação de condições para o desenvolvimento do homem em sociedade.
            Apesar de parecer ser uma questão corporativa de um grupo de profissionais na França, o livro levanta questões atuais para todos nós. A avaliação nas escolas, faculdades, empresas ainda é feita para classificar e excluir os inaptos ao sistema, ao invés de ser usada como um mecanismo de aprendizagem. Ela é simplesmente, conforme o subtítulo do livro, uma máquina de impostura, de engano e de dominação.

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