sábado, 18 de agosto de 2012

Os Motins no Início da Era Moderna

Márcio Ramos

            A história dos movimentos sociais nos mostra que a plebe se organizou de diversas formas em sua luta política. A partir do século XVIII, uma das principais formas de organização foi através dos motins de fomes, onde ela  fazia uso de um repertório de ações  coletivo na luta por seus direitos.
            Quando as pessoas comuns percebiam e entendiam que certas circunstancias e atitudes governamentais e econômicas, como o aumento de impostos ou do preço de pão eram prejudiciais, elas se uniam e se organizavam em motins, realizando revoltas e atacando quem eles percebiam causador do distúrbio da ordem natural da vida em comunidade.
            Analisando os movimentos do século XVIII na Inglaterra,  Thompson afirmou que os motins de fome buscavam sua legitimação nos costumes, na tradição, possuindo formas complexas de ação, já  que tinham  objetivos específicos e eram direcionados a interferir na esfera política para conservar determinada estrutura social[1]. Não eram atitudes de seres famintos irracionais.
            A Europa nesse período passava por grandes mudanças econômicas, através do desenvolvimento do capitalismo, mas as pessoas não se adequavam a esse novo tempo, e buscavam o retorno a antiga organização social. Reivindicavam a manutenção dos direitos consuetudinários, e por isso faziam motins. Suas ações eram legitimadas pelo consenso de grande parte da sociedade sobre tal questão, que temiam a novidade.
            Apesar das mudanças provocadas pelo capitalismo, “a economia dos pobres era local e regional, derivadas de uma economia de subsistência”[2], portanto, a plebe não aceitava as transformações provocadas por essa nova realidade e agiam no intuito de conservar como válida a sua antiga noção de direito, e mais do que isso, sua antiga forma de sobrevivência, que se baseava no respeito do soberano a tradição local.
            A reação popular apresentava um padrão de comportamento, ou seja, o povo era chamado a partir do toque do sino da Igreja, se reunindo na praça e indo em direção ao lugar onde o a origem do problema era detectada, como por exemplo,  os armazéns.As revoltas eram  iniciadas quase sempre com as mulheres, as mais envolvidas  com o valor dos produtos. Elas reagiam defendendo “uma espécie de reflexo biológico, a vida de seus filhos e a existência física de seu lar”[3].
            Esses motins possuíam um certo repertório de ação, que os unia e ao mesmo tempo servia para instrumentalizar suas ações, conforme  a definição de Mark Traugott:

O repertório da ação coletiva, como sua contrapartida teatral, implica em um grupo de atores sociais que escolhe entre um número restrito de performance com as quais eles estão familiarizados. Suas opções estão circunscritas tanto pela experiência anterior, quanto pelos recursos materiais, organizacionais e conceituais que eles encontram às mãos[4].

            Ao ouvir o sino, todos entendiam o significado e sua intenção, e como viviam uma mesma realidade de exploração se união para combatê-la, na busca do bem-estar público. Podemos dizer que possuíam uma “visão comum do mundo, numa leitura partilhada do passado (...) de normas, crenças e valores”.[5] Possuíam uma cultura política, e respondiam ao seu chamado.
            Os motins causavam pavor entre as autoridades e as classes governantes, e por isso o rei controlava tais             movimentos através de decisões de manter  o preço dos alimentos. Segundo Thompson o Estado Paternalista salvava a plebe nos momentos de carestia para conter grandes revoltas sociais. O movimento ocorria e logo se iniciava uma situação de negociação entre o produtor, ou comerciantes e os consumidores, ou uma ação do Estado.
            A análise de Thompson foi criticada por Bohstetd, Raudall e Charlesurth, que afirmam que os motins não são formas organizadas de manifestação e que a política paternalista não tinha como preocupação inicial a sobrevivência dos pobres, mas sim a manutenção do Estado e da ordem social. Ela era usada apenas para conter o ímpeto da população, que apenas reagiam a fome de forma irracional. Apesar dessas críticas, Thompson manteve a sua interpretação, afirmando que seu período de análise histórica havia se restringido ao século XVIII na Inglaterra e que

os motins são geralmente uma resposta racional, que não acontece entre os indefesos ou sem esperança, mas entre aqueles grupos que se sentem com um pouco de poder para tomar os viveres que precisam quando os preços vão às alturas, os empregos desaparecem e eles vêem o seu suprimento de alimentos básicos ser exportado[6].

            Os motins que ocorriam na Europa possuía semelhanças com os que aconteciam na América colonial nesse mesmo período. Aqui, quando os  colonos achavam que os costumes haviam sido desrespeitados, que o governo ou seu representante estava sendo tirânico, eles também  se amotinavam.
            Um exemplo de revoltas que se baseavam nessa critica à quebra de um pacto entre o soberano e os súditos foi a revolta que ocorreu em São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1660, chamada de Revolta da Cachaça.A região vivia da produção da cana-de-açúcar, e como era importante na economia colonial tinha que ser bem protegida, e o preço da manutenção das tropas de defesa era cobrado da população, o que gerava uma grande insatisfação .
            Quando o governador Salvador de Sá Correia tentou cobrar uma nova taxa sobre todos os moradores da cidade, ele foi acusado pela população de tirânico, e de nepotismo. A população se reúne em praça publica e inicia um levante, fazendo o governador fugir e  instituindo um novo governo, formado de diversos setores da população. Pouco tempo depois o governador retorna e o grupo é desmobilizado e os líderes presos.
Um outro exemplo são  as revoltas que aconteceram em Minas Gerais no início do século XVIII. Em 1715, houve um levante na região mineradora devido à tentativa do governador de mudar a cobrança de impostos, que passaria a ser por bateia. A população exigia que a cobrança continuasse a ser como era antes, através do pagamento do quinto em 30 arrobas, já que a nova forma era vista como injusta e muito onerosa aos mineradores. Conforme Carla Anastasia assinala, os revoltosos declararam “que não discutiam a justiça do pagamento do tributo com o qual voluntariamente se dispunham a arcar, mas que nada pagariam caso a forma da arrecadação fosse alterada”[7].  O rei não viu outra solução a não ser manter a cobrança de acordo com o costume estabelecido entre as partes. Nesse caso, a ação não era contra o rei ou a estrutura política estabelecida, mas sim contra o abuso de autoridade do rei ou de seus comandados.
            Por trás dessas revoltas a visão política que prevalecia era a de que o governo deve ser justo e não pode explorar os vassalos. Se o governante fosse justo, não realizando uma exploração descabida, ele permitiria o desenvolvimento da sociedade e não a sua destruição. A sociedade era vista como um corpo e o desrespeito a parte desse corpo resultaria numa reação violenta de todo o corpo.
Analisando tal realidade,  Luciano Raposo de Almeida Figueiredo afirma que 

o reforço à figura do soberano, e ao amparo que deveria proporcionar aos vassalos, estaria configurado em um dos rituais adotados nessas revoltas: os gritos de “Viva o rei”, onde manifestava-se antecipadamente o reconhecimento público da lealdade que, na perspectiva desses colonos, ao lado dos clamores contra a usurpação dos direitos tradicionais de súditos, legitimava a prática da rebelião.[8]

            Percebemos a partir dessas análises que a plebe se organizava a partir de suas experiências, na tentativa de se conservar uma organização social e cultural que lhe pareciam mais justa. Combatiam o que eles entendiam como a quebra de um pacto. O homem no inicio da Era Moderna era inseguro, se sentindo ameaçado por fatores diversos, tendo medo da floresta( lugar dos lobos e dos bandidos), medo do mar, medo dos outros( o estranho é perigoso), medo da feitiçaria, medo da noite. Medo de serem mortos pela fome, que era uma realidade inescapável para a maioria. Era um sociedade que de fato temia. Os contos que surgem nesse momento (Chapeuzinho Vermelho, João e Maria, entre outros[9]) vão justamente falar dessa angústia e medo.
Esse homem que fazia motim era rude, ainda vivendo sob o domínio da mentalidade medieval. Está em fase de transição entre o velho e o novo, possuindo características modernas e medievais, e utilizam de concepções antigas em sua luta política. Buscam a explicação para a vida a partir da religiosidade. Se apegam a segurança da tradição, a defendendo até mesmo com o uso de violência.
            Natalie Zemon Davis ao analisar os ritos de violência do período das reformas religiosas, afirma que ela possui três objetivos básicos: defender a doutrina, combater a poluição da doutrina e desempenhar a função das autoridades, que por incompetência ou negligência não praticavam. Dessa forma, a multidão incorporava o papel de juiz, através de julgamento e execuções públicas.
            Tanto os católicos e protestantes defendiam aquilo que eles achavam ser a verdade original, combatendo as “novidades profanas” ou “desvios” da verdadeira doutrina. Geralmente iniciavam os movimentos em datas e situações especificas, quase sempre relacionadas ao calendário religioso. O seu repertório, que Natalie Davis chama de ritos de violência, era  derivado da “Bíblia, da liturgia, da ação das autoridades políticas ou tradições da justiça popular, cuja intenção era purificar a comunidade religiosa e humilhar o inimigo, tornando-o menos perigoso.”[10]
            Podemos perceber a dura realidade em que esses homens e mulheres enfrentavam. Vivam tempos de mudanças sociais, econômicas e culturais, ao mesmo tempo não sabiam como responder a tal situação e como preservar seus direito. Acabam se organizando e reforçando os laços de solidariedade, agindo em defesa do que acreditavam através dos motins, que na realidade não eram tão complexos como Thompson queriam, eram espontâneos e em sua maioria sem liderança, mas mantinha um certo padrão de comportamento, ou repertório.            
A constatação da longa duração desses eventos nos permite ver como eles faziam parte de uma cultura de participação política, que não se acomodava às mudanças, mas que lutava para se manter.
           


                       
BIBLIOGRAFIA

ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/ Arte, 1998.
BERSTEIN, Serge, In: RIOUX & SIRINELLI( Org.). Para uma história Cultural .Lisboa: Estampa, 1988
DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
DAVIS, Natalie Zemon.As razoes do desgoverno. Ritos de violência. In:- Culturas do povo: sociedade e cultura no inicio da França moderna: oito ensaios. Rio de Janeiro: 1990.
DELUMEAU, Jean. Medo e sedições. In:-. História do medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Práticas políticas e idéias ilustradas na América portuguesa(quando os motins tornam-se inconfidências – 1640-1817). 10th International Congress on the Enlightenment, 7,1999,Anais, Dublin.(inédito)
RUDE, George F. E.. A multidão na historia: estudo dos movimentos populares na França e na Inglaterra 1730-1848. Rio de Janeiro: 1991.
THOMPSON, E. P.A economia moral da multidão inglesa no século XVIII. Economia moral revisitada. In: Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998
TRAUGOTT, Mark.Barricades as repertoire: continuities and discontinuities in the History of French contention ( Tradução, adaptação e notas por Carla Anastasia). Manuscrito.


[1] THOMPSON, E. P.A economia moral da multidão inglesa no século XVIII. Economia moral revisitada. In: Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998,p. 152
[2] Idem, p. 167.
[3] DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 189
[4] TRAUGOTT, Mark.Barricades as repertoire: continuities and discontinuities in the History of French contention ( Tradução, adaptação e notas por Carla Anastasia). Manuscrito
[5] BERSTEIN, Serge, In: RIOUX & SIRINELLI( Org.). Para uma história Cultural .Lisboa: Estampa, 1988, p.362.
[6]Thompson, Op. Cit.  p. 207.
[7]ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/ Arte, 1998, p. 33
[8] FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Práticas políticas e idéias ilustradas na América portuguesa(quando os motins tornam-se inconfidências – 1640-1817). 10th International Congress on the Enlightenment, 7,1999,Anais, Dublin.(inédito)
[9] Conforme DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
[10] DAVIS, Natalie Zemon.As razoes do desgoverno. Ritos de violência. In:- Culturas do povo: sociedade e cultura no inicio da França moderna: oito ensaios. Rio de Janeiro: 1990, p. 149.

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