segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Zumbi vive na Serra da Barriga



Em 20 de novembro de 1695, Nzumbi dos Palmares caía
lutando em mata perdida do sul da capitania de
Pernambuco. Seu esconderijo fora revelado por lugar-
tenente preso e barbaramente torturado. Mutilaram seu
corpo. Enfiaram seu sexo na boca. Expuseram a cabeça
do palmarino na ponta de uma lança em Recife. Os
trabalhadores escravizados e todos os oprimidos deviam
saber a sorte dos que se levantavam contra os senhores
das riquezas e do poder.
Em 1654, com a expulsão dos holandeses do Nordeste,
os lusitanos lançaram expedições para repovoar os
engenhos com os cativos fugidos ou nascidos nos
quilombos da capitania. Para defenderem- se, as aldeias
quilombolas confederaram- se sob a chefia política do
Ngola e militar do Nzumbi. A dificuldade dos
portugueses de pronunciar o encontro consonantal
abastardou os étimos angolanos nzumbi em zumbi,
nganga nzumba, em ganga zumba. A confederação teria
uns seis mil habitantes, população significativa para a
época.
Em novembro de 1578, em Recife, Nganga Nzumba
rompeu a unidade quilombola e aceitou a anistia
oferecida apenas aos nascidos nos quilombos, em troca
do abandono dos Palmares e da vil entrega dos cativos
ali refugiados ou que se refugiassem nas suas novas
aldeias.
Acreditando nos escravizadores, Ganga Zumba deu as
costas aos irmãos de opressão e aceitou as miseráveis
facilidades para alguns poucos. Abandonou as alturas
dos Palmares pelos baixios de Cucuá, a 32 quilômetros
de Serinhaém. Foi seduzido por lugar ao sol no mundo
dos opressores, pelas migalhas das mesas dos
algozes.
Então Nzumbi assumiu o comando político-militar da
confederação.
Para ele, não havia cotas para a liberdade ou
privilegiados no seio da opressão! Exigia e lutava
altaneiro pelo direito para todos!
Não temos certeza sobre o nome próprio do último
nzumbi que chefiou a confederação após a defecção de
Nganga Nzumba. Documentos e a tradição oral
registram-no como Nzumbi Sweca.
Nos derradeiros ataques aos Palmares, as armas de
fogo e a capacidade dos escravistas de deslocar e
abastecer rapidamente os soldados registravam o maior
nível de desenvolvimento das forças produtivas
materiais do escravismo, apoiado na superexploração
dos trabalhadores feitorizados. As tropas luso-
brasileiras eram a ponta de lança nas matas palmarinas
da divisão mundial do trabalho de então.
Não havia possibilidade de coexistência pacífica entre
escravidão e liberdade. Palmares era república de
produtores livres, nascida no seio de despótica
sociedade escravista, que surge hoje nas obras da
historiografia apologética como um quase paraíso
perdido, onde a paz, a transigência e a negociação
habitavam as senzalas. Palmares era exemplo e atração
permanentes aos oprimidos que corroíam o câncer da
escravidão.
Como já lembraram, nos anos 1950, o historiador
marxista-revolucionário francês Benjamin Pérret e o
piauiense comunista Clóvis Moura, a confederação dos
Palmares venceria apenas se espraiasse a rebelião aos
escravizados dos engenhos, roças e aglomeração do
Nordeste, o que era então materialmente impossível.
Palmares não foi porém luta utópica e inconsequente.
Por longas décadas, pela força das armas e a
velocidade dos pés, assegurou para milhares de homens
e mulheres a materialização do sonho de viver em
liberdade de seu próprio trabalho. Indígenas, homens
livres pobres, refugiados políticos eram aceitos nos
Palmares. Eram braços para o trabalho e para a
resistência.
A proposta da retomada da escravidão colonial em
Palmares, com Zumbi com um “séquito de escravos
para uso próprio”, é lixo historiográfico sem qualquer
base documental, impugnado pela própria necessidade
de consenso dos palmarinos contra os escravizadores.
Trata-se de esforço ideológico de sicofantas
historiográficos para naturalizar a opressão do homem
pelo homem, propondo- a como própria a todas e
quaisquer situações históricas.
Palmares garantiu que milhares de homens e mulheres
nascessem, vivessem e morressem livres. Ao contrário,
em poucos anos, os seguidores de Ganga Zumba foram
reprimidos, re-escravizados ou retornaram fugidos aos
Palmares, encerrando- se rápida e tristemente a traição
que dividiu e fragilizou a resistência quilombola.
A paliçada do quilombo do Macaco foi a derradeira
tentativa de resistência estática palmarina, quando a
resistência esmorecia. Ela foi devassada em fevereiro de
1694, por poderoso exército, formado por brancos,
mamelucos, nativos e negros, entre eles, o célebre Terço
dos Enriques, formado por soldados e oficiais africanos
e afro-descendentes. Não havia e não há consenso
racial e étnico entre oprimidos e opressores.
O último reduto palmarino, defendido por fossos,
trincheiras e paliçadas, encontrava- se nos cimos de
uma altaneira serra.
A Serra da Barriga e regiões próximas, na Zona da Mata
alagoana, com densa vegetação, são paragens de beleza
única. Quem se aproxima da serra, chegado do litoral,
maravilha-se com o espetáculo natural. O maciço
montanhoso rompe abruptamente, diante dos olhos, no
horizonte, como fortaleza natural expugnável, dominando
as terras baixas, cobertas pelo mar verde dos canaviais
flutuando ao lufar do vento.
Se apurarmos o ouvido, escutaremos os atabaques
chamando às armas, anunciando a chegada dos
negreiros malditos. Sentiremos a reverberação dos tam-
tans lançados do fundo da história, lembrando às
multidões que labutam, hoje, longuíssimas horas ao dia,
não raro até a morte por exaustão, por alguns punhados
de reais, nos verdes canaviais dessas terras que já
foram livres, que a luta continua, apesar da já longínqua
morte do general negro de homens livres.
Mario Maestri é professor do programa de pós-
graduação em História da UPF.
Fonte:
http://www.brasildefato.com.br/node/11171
Escultura de Zumbi dos Palmares na praça da Sé, em
Salvador (BA) -
Foto: Gorivero/CC

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