quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A ditadura apresenta as suas armas


por Carla Aranha
A ditadura começou mansa. Envergonhada, na definição do jornalista Elio Gaspari, que escreveu sobre o período. Lideranças civis que apoiaram o golpe acreditavam que os militares sairiam de cena com a mesma facilidade com que deixaram a caserna para entrar na vida política. Os próprios golpistas tentavam ostentar verniz democrático. Preferiam ser chamados de revolucionários. O Congresso continuou funcionando, embora expurgado dos políticos inconvenientes ao regime, e houve a preocupação de redigir uma Constituição que justificasse a nova ordem. Mas não se colocam tanques nas ruas impunemente, e não tardou para que o autoritarismo apresentasse suas armas.
Tudo começou pela violação de direitos políticos. Já em abril de 1964, foram cassados 41 deputados federais, 29 líderes sindicais, 122 oficiais das Forças Armadas simpáticos a João Goulart e várias personalidades públicas, como o antropólogo Darcy Ribeiro – então reitor da Universidade de Brasília –, o economista Celso Furtado e o ex-presidente Jânio Quadros. Em breve, nem o ex-presidente JuscelinoKubitschek escaparia. Tratava-se de suspender, por até dez anos, o direito de ocupar cargo público, assim como o de votar e ser eleito. Os funcionários públicos que foram considerados ameaça à “segurança do país” foram demitidos. Os expurgos atingiram em cheio as Forças Armadas, que teve quase 3 mil integrantes punidos em 1964.
Eleição indireta
A perseguição política estava amparada pelo Ato Institucional número 1 (AI-1), assinado em 9 de abril pela Junta Militar que governou provisoriamente o país, formada pelo vice-almirante Augusto Grünewald, da Marinha, o tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia Melo e o general Arthur da Costa e Silva – que, anos depois, viria a ser presidente. O AI-1 também determinou a “eleição” do novo presidente de forma indireta. O escolhido para o cargo foi o general Humberto de Alencar Castello Branco, empossado em 15 de abril para um governo que ficaria marcado por um estilo mais vacilante do que propriamente brando.
Também houve as prisões e as torturas. Documentos do Departamento de Estado dos Estados Unidos mencionam 5 mil detenções feitas em poucas semanas após a derrubada de Jango. No balanço de 1964, nada menos que 203 denúncias de maus-tratos foram registradas. No ano seguinte, o presidente Castello Branco baixou o Ato Institucional número 2, instituindo que os processos políticos seriam julgados, daí em diante, pela Justiça Militar. “Deu-se assim o primeiro grande passo no processo de militarização da ordem política nacional”, sustenta Elio Gaspari, no livro A Ditadura Envergonhada. Os tribunais não escaparam dos expurgos, contribuindo para deixar a Justiça nas mãos de parceiros do regime.
O AI-2 também acabava com os partidos existentes. O governo obrigou todos os políticos a se enquadrarem em duas novas legendas: a Arena (Aliança Renovadora Nacional), pró-ditadura, que recebeu os quadros da UDN, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), no qual se agruparam os restos de PTB e PSD. “Com vários deputados de centro e esquerda cassados, na prática quem dava as cartas era o governo, ou seja, a Arena”, afirma o historiador Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense. As cassações de parlamentares prosseguiram em 1965 e 1966. Em outubro de 1966, a situação chega a tal ponto que até as moderadas lideranças do Congresso reclamam desse expediente, por considerá-lo exagerado. Em represália, Castello Branco decreta recesso parlamentar por um mês.
O mandato de Castello Branco iria até 1967, e o fechamento do Congresso deixa claro que a Casa, desfigurada e de mãos atadas, irá apenas referendar a escolha de um sucessor militar. Outro mau sinal nessa direção tinha sido o AI-3, editado no início do ano, que estipulava eleições indiretas também para governador. “Se em 1964 ainda se tentava segurar um pouco a linha dura dos militares e dar uma aparência de legitimidade ao novo governo, em 1966 a ditadura já começava a mostrar que iria endurecer”, diz Ferreira.
No final do ano, os brasileiros conheceram mais um AI, o número 4, feito só para obrigar os deputados a se reunirem às pressas, até janeiro de 65, para que fosse aprovada uma nova Constituição – na verdade, pronta há seis meses. O novo texto só entrou em vigor em 15 de março de 1967 – data em que tomou posse um novo presidente, escolhido entre os militares e incensado pelo Congresso, o general Arthur da Costa e Silva.
Nada disso chegou a intimidar demais a oposição, na avaliação de Jorge Ferreira. “Naquela época ainda se acreditava que a democracia pudesse voltar ao país em pouco tempo”, comenta o historiador. Figuras de expressão no tempo dos civis, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e João Goulart, no exílio, confabularam no segundo semestre de 1967 para criar uma aliança contra o governo militar, a Frente Ampla. Meses depois, em março de 1968, a iniciativa é declarada ilegal.
Na mesma época, a esquerda começava a pegar em armas. Com a ajuda de Cuba, Leonel Brizola prepara vários grupos para ação armada, que não vão adiante. Mais efetiva é a ação da Ação Libertadora Nacional (ALN), que é criada pelo líder comunista Carlos Marighella e por estudantes, no final de 1967. A organização faz os primeiros assaltos a banco para arrecadar fundos para o movimento, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Era um início tímido. “A esquerda, os intelectuais e os estudantes ainda não haviam se dado conta de que a ditadura não iria largar o osso”, diz Jorge Ferreira.
Combate à inflação
Na economia, o governo militar fez grandes mudanças logo que assumiu. Os ministros Roberto Campos, do Planejamento, e Otávio Bulhões, da Fazenda, criaram um plano para controlar a inflação, que chegava a 80% ao ano. Também fizeram uma reforma tributária e outra administrativa inéditas. “A dupla Campos-Bulhões unificou os impostos, o que representou mais arrecadação para o governo federal”, explica o economista Frederico Lustosa, da Fundação Getúlio Vargas, do Rio. Nessa época ainda foram introduzidos os planos de orçamento do governo, outra inovação, e um sistema unificado de Previdência – até 1964, eram os sindicatos que, pela contribuição mensal dos trabalhadores, garantiam a aposentadoria de cada categoria. “Foram reformas positivas”, opina Lustosa. É uma opinião controversa. José Maurício Soares, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese), é um dos que discordam. “Começou em 1964 a política de achatamento do salário mínimo como forma de conter a inflação, segurando a emissão de dinheiro”, relata. “A concentração de renda, um dos maiores problemas do Brasil hoje, também teve início aí, com os empresários e investidores das bolsas ganhando mais, pois o país crescia, e os trabalhadores ganhando menos”, analisa.
Segundo números do Dieese, o salário mínimo de 1964 seria hoje equivalente a R$ 823; em 1965, caiu para R$ 793; em 1966, para R$ 676,76. Depois, em 1967, foi para R$ 640. No ano do AI-5, o salário mínimo já tinha baixado para o que, atualmente, representaria R$ 626. “Se muita coisa mudou na economia, a meu ver nocivamente, na política também era uma surpresa depois da outra”, comenta Soares, que em meados dos anos 60 estava terminando o segundo grau.
A verdade é que a semente da ditadura violenta que se instalaria em 1968 foi plantada em 1964 e germinou nos anos seguintes. Uma frase do preâmbulo do AI-1 é reveladora desse processo: “A revolução legitima-se a si própria”.

Congresso é fechado pela primeira vez
Para manter aparências,militares só suspenderam trabalho sem fases excepcionais
Durante toda a ditadura, o Congresso só foi formalmente fechado em três períodos. O primeiro começou em 20 de outubro de 1966 e teve ares de escândalo, com o plenário sendo invadido por forças militares do governo Castello Branco dias antes. Essa suspensão foi até 22 de novembro de 1966. Após a decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, o Parlamento foi novamente fechado. Até 21 de outubro de 1969, a Casa não voltou a funcionar. A terceira suspensão foi entre 1º e 14 de abril de 1977, para a edição de um pacote de medidas eleitorais que visava garantir a vitória dos candidatos do governo. Para gerir o país de forma arbitrária, os governos militares usaram as cassações e a legislação que era editada sem passar pelo Congresso. A idéia era tentar manter uma fachada democrática. “Mesmo aberto, o Congresso funcionava de forma canhestra, porque só havia dois partidos e o governo é que legislava, por meio dos decretos-leis e atos institucionais”, diz o historiador Jorge Ferreira.
Vista grossa para torturas
Mesmo antes doAI-5, até as mortesficaram sem punição
Até o final de 1968, ano do AI-5, a tortura ainda não tinha se tornado praxe nos cárceres brasileiros. “Ela já começava a ser praticada, mas não com a freqüência do final dos anos 60 e começo dos 70”, diz o historiador Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense. Entre 1964 e 1968, foram torturados e mortos 34 opositores do regime. Sabe-se até quem foi o primeiro torturado: o líder comunista pernambucano Gregório Bezerra, que no dia 2 de abril foi preso, arrastado pelas ruas de Recife, amarrado em um jipe e depois espancado por um oficial do Exército com uma barra de ferro. Como ainda havia alguma liberdade de imprensa, os jornais trataram de colocar a boca no mundo, em reportagens sobre o caso de Bezerra e outros semelhantes. O jornalista Carlos Heitor Cony, que à época trabalhava no jornal O Globo, no Rio, lançou-se em 1964 em uma campanha contra a tortura. O governo se incomodou com as denúncias, e Castello Branco decidiu enviar o general Ernesto Geisel, então chefe do Gabinete Militar, em viagem de averiguação por vários estados brasileiros. “A viagem teve ao menos o mérito de paralisar as torturas”, afirmou o jornalista Márcio Moreira Alves, em seu livro Torturas e Torturados, de 1966. Mas como os torturadores não foram punidos, sentiram-se apoiados pelos superiores, analisa o jornalista Elio Gaspari em A Ditadura Envergonhada.
Fonte: http://historia.abril.com.br/politica/ditadura-apresenta-suas-armas-434186.shtml

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