sexta-feira, 12 de julho de 2013

Ah, essas ideias francesas!

Em tempos de revoluções, Recife tornou-se mais feminina e
foi palco de crescente liberação sexual no século XIX


Marcus J. M. de Carvalho



 Atraídas pela vida urbana, as mulheres do século XIX passariam a olhar a rua cada vez mais como “o lugar da liberdade e do progresso”. (Fundação Biblioteca Nacional)

 

A primeira metade do século XIX, no Nordeste, é a época da
Insurreição Pernambucana (1817), da Confederação do
Equador (1824) e da Insurreição Praieira (1848). Nas ruas
ouviam-se as palavras de ordem do Iluminismo, as chamadas
“ideias francesas”, tais como República e Constituição.
Louvava-se a liberdade que, tal como hoje em dia, tinha
múltiplos significados.

Mas, e as mulheres? E as alcovas? Será que aquelas ideias
ficaram apenas no terreno da política?
Embora não tenha havido nenhuma revolução sexual paralela
às chamadas “revoluções liberais”, muita coisa também
mudaria nos costumes íntimos das cidades brasileiras. A
população livre dos bairros centrais do Recife praticamente
dobrou entre a Independência e 1850, principalmente devido à
vinda de gente do interior imediato, área de engenhos
decadentes, paulatinamente engolidos pela cidade. Muitos
desses novos habitantes eram mulheres livres e libertas. Nos
censos de 1828 e 1855, elas eram a maioria absoluta nos
bairros centrais do Recife. A dinâmica da vida urbana atraía a
população feminina, pois a cidade era percebida como o lugar
da liberdade e do progresso. Lá havia mais oportunidades de
trabalho e de vivências mais significativas do que na Zona da
Mata submetida às duras regras não escritas do patriarcado
rural.

Sintoma de uma possível maior licenciosidade é o número de
nascimentos fora dos laços matrimoniais registrados nas
igrejas do Recife. Nos bairros centrais da cidade (Recife,
Santo Antônio, São José e Boa Vista), 46% das crianças
batizadas em 1838 eram filhos ilegítimos. Já nas freguesias
açucareiras de Jaboatão, Ipojuca, Cabo e Goiana, eram
apenas 25%. Para manter esses filhos, era inevitável procurar
emprego. Muitas casas eram verdadeiras indústrias,
oferecendo nos jornais serviços variados que o mercado de
trabalho reservava às mulheres, tais como ensinar as
primeiras letras, fabricar doces e costurar roupas. As damas
do Recife vestiam-se à francesa. As mais ricas com vestidos
confeccionados em Paris, enquanto as demais copiavam os
padrões das revistas francesas de moda. Nos anos 1840,
havia francesas oferecendo-se nos jornais para ensinar a
língua, tocar piano, dançar e costurar de acordo com o
figurino de sua terra. Mas havia também brasileiras que
sabiam costurar e buscavam emprego em loja “francesa”.
Enquanto isso, a rua ainda era um desafio. O espaço público
foi uma construção essencialmente masculina, do que resultou
uma confusão semântica que perdura até os dias de hoje.

“Mulher pública” era sinônimo de prostituta na Europa e no
Brasil. A prostituição espalhava-se pelas ruas e pontes. No
entorno do forte das Cinco Pontas, as “vivandeiras” causavam
desordens. Em São José, “meretrizes escandalosas”
incomodavam a Câmara. Um dos pontos do trottoir era na rua
do Imperador, no coração do então aristocrático bairro de
Santo Antônio. Em 1838, foram presas na província 169
pessoas “sem ofício”, “quase na totalidade meretrizes”,
segundo Jeronymo Martiniano Figueira de Mello, que foi
senador no Império, e escreveu um ensaio estatístico sobre
Pernambuco publicado em 1852.Na metade do século, o
organizador das estatísticas provinciais escreveu: “Como em
todo o império [...], as pretas em geral e uma grande parte
das outras classes inferiores da sociedade, pertencentes ao
sexo feminino, se entregam mais ou menos à prostituição”.

Antes que os prostíbulos brasileiros fossem invadidos por
polacas e francesas na virada do século XIX para o XX,
algumas açorianas chegaram ao Recife em navios abarrotados
de gente. Só podiam desembarcar se alguém pagasse o preço
da viagem. Centenas de pessoas atravessaram o Atlântico
nessas circunstâncias nas décadas de 1840 e 1850. Essa
prática abusiva era chamada pelo cônsul lusitano de “tráfico
de escravatura branca”. Havia verdadeiros leilões dentro das
embarcações. As mais bonitas alcançavam os melhores
preços ainda no convés. Depois eram levadas para as casas
noturnas. Na maioria das vezes, não era delas a escolha, mas
de quem arrematava seus serviços pelo valor da passagem.
Pouco a pouco, os antigos hábitos de reclusão feminina
começaram a ser desafiados nos eventos do bumba meu boi e
nos lunduns. Lamentava o padre Carapuceiro (pseudônimo de
Lopes Gama, importante cronista da época e diretor do Liceu
Pernambucano e da Faculdade de Direito) que, àquela altura,
namorar já não era mais apenas ser “janeleira”. A participação
de mulheres livres nesses folguedos é um indício do
afrouxamento dos costumes patriarcais de reclusão feminina.
Mulheres reagiam aos códigos de conduta que lhes eram
impostos. Inclusive as da elite. Foi o que notou o engenheiro
francês Vauthier, ao frequentar “saraus” nas casas das
famílias aristocráticas, onde era servido chá à inglesa.
Segundo ele, várias mulheres, tanto solteiras como casadas,
tentaram seduzi-lo. E o flerte não estava apenas nas salas.
Foi nos banhos de rio que viram dona Bernarda Francisca das
Chagas de braços dados com o sargento João Rodrigues da
Silva, levando seu marido a pedir o divórcio. Dona Bernarda
defendeu-se. Negou as acusações, apesar das muitas
testemunhas nos autos que a viram pela cidade com um
“pardo trigueiro”, entrando até junto com ele no “banheiro” em
uma ilha do rio Capibaribe, do bairro Capunga. Alegou
também que seu marido a deixara para se amancebar com
uma “preta” nos arredores da cidade.

Não era raro um homem casado ter outras mulheres. Mesmo
os estrangeiros assimilavam essas práticas. Vauthier tinha um
conterrâneo no Recife que trouxera uma mulher do interior
somente para seu deleite. Outro francês, Tollenare, notou que
os homens das elites chegavam a ter ciúmes das suas
“mulatas de estimação”. Esses hábitos explicam os anúncios
de escravas para “serviço de homem solteiro”, um modelo
intermediário entre a empregada doméstica e a prostituição
da cativa. Dentro de casa, as empregadas, quer fossem
cativas ou livres, eram quase sempre assediadas pelos
marmanjos da família. As sinhás eram compelidas a aturar
esses deslizes, mas não é razoável supor que aceitassem
sempre, conformadas. Muitas cativas sofriam a dupla
opressão do assédio do senhor e do ciúme da sinhá. O
nascimento de crianças mestiças era a prova material da
infidelidade. Dizia O Popular , em 7 de julho de 1830, sobre a
bastardia: “Podemos desafiar a família mais presunçosa do
Brasil, que se mostre em todos os seus ramos desligada da
gente parda, e que não tenha parentes nesta classe ao menos
por linhas travessas[sic]”. Pode-se dizer que a paz da família
nuclear patriarcal tinha um alicerce na prostituição. Ao
recorrer à prostituta, o homem casado evitava que suas
frustrações transbordassem para o recinto onde dormiam as
amas. Para O Popular , era preciso que as luzes do século
também chegassem ao leito conjugal, protegendo assim a
família. Para isso, as esposas deveriam continuar sendo
“amantes” dos seus maridos.

As perigosas “ideias francesas”, que questionavam a
monarquia e até a escravidão, trouxeram ainda outros
“francesismos”, como se dizia na época. Crítico conservador
dos costumes, o Carapuceiro comentou espantado que nos
bailes estavam sendo adotados hábitos “franceses”, como
“dar beijocas nas senhoras”. E, em resposta a outro jornal –
segundo ele escrito por uma dama – condenava o incentivo
para que as damas flertassem como forma de conseguir
melhores casamentos. Para o padre Carapuceiro, a autora do
jornal era uma “gamenha”, o que chamaríamos hoje de mulher
assanhada.

No ano da Insurreição Praieira, 1848, o anúncio de um baile
oferecido à fina flor da sociedade pernambucana deixava
entrever como essas ideias estavam sendo postas em prática.
A festa pretendia seguir o que se fazia na francófila corte no
Rio de Janeiro. Começando ainda cedo, a dança terminaria às
três da manhã. Cada detalhe das regras da festa era
acompanhado da explicação: era assim que se fazia na corte.
Inclusive na parte que dizia ser terminantemente proibido
tentar tirar a máscara dos presentes, preservando-se a
identidade dos mascarados. Pode-se dizer que, numa cidade
onde era normal uma festa de mascarados acabar às três da
madrugada, namorar, realmente, já não era mais ser apenas
“janeleira”.

Marcus J. M. de Carvalhoé professor da UFPE e autor, com
João José Reis e Flávio dos Santos Gomes, de O Alufá
Rufino: Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro
(c.1822 – c. 1853) (Companhia das Letras, 2010).
Saiba mais - Bibliografia
CARVALHO, Marcus J.M. Liberdade, Rotinas e Rupturas do
Escravismo. Recife: UFPE, 1998.
DEL PRIORE, Mary. História das mulheres no Brasil . São Paulo:
UNESP/ Contexto, 1997.
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. O Carapuceiro e outros
Ensaios de Tradução Cultura. São Paulo: Hucitec, 1996.
Fonte:Revista de História

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