sexta-feira, 12 de julho de 2013

Quarto grande e senzala

A relação entre senhores e escravos incluía afeto, intimidade
e sexo. Nem por isso eles se moviam de seus lugares, na
rígida hierarquia colonial

Suely Creusa Cordeiro Almeida





 Preparação de farinha de mandioca no início do século XIX, segundo gravura de Rugendas. As relações de proximidade entre livres e escravos não comportava a dissolução das hierarquias. (Biblioteca Nacional da Alemanha)


Sexo e paixão, com ou sem amor, entre livres e escravos. Ainda há quem imagine a atmosfera colonial como um ambiente lasso, sem freios, passível de todos os desvios. Uma sociedade marcada pelo congraçamento do prazer, em que corpos, independentemente de qualquer coisa, se entrelaçavam
numa “democracia” dos contatos que parecia aproximar todos. É uma ideia enganosa. Essa proximidade social nunca existiu.

É certo que as relações entre escravos e senhores incluíam a afetividade e a intimidade, e muitas vezes resultavam em sexo. Mais fortes do que essas
“fraquezas” humanas, porém, eram as hierarquias sociais. Em resposta a tais comportamentos desviantes, prevalecia a busca pela conservação dos padrões da moral cristã e da honra. Quanto maior a ameaça à
norma vigente, pior o castigo.

Se as relações afetivas entre senhores e escravas provocavam escândalos, imagine entre senhoras e escravos. Sinhazinhas se envolviam com crias dos
engenhos, amigos de folguedos, e com eles perdiam a virgindade. Foi o que motivou a queixa de Domingos da Silva Só, que correu à Ouvidoria Geral da Capitania de Pernambuco contra seu escravo Antônio, acusado de estuprar sua filha e fugir com ela, em 1755.

É possível imaginar o cotidiano dessa difícil afeição. A convivência diária aproximou Antônio da filha de seu senhor (de quem não se sabe nome nem idade). O efeito devastador da paixão fez nossos personagens correrem riscos. Encontros furtivos, adiamentos, a angústia entre o certo e o errado, a culpa marcaram a relação espúria e desigual de Antônio com sua senhora. Como a felicidade é quase sempre irresponsável, ele arriscou a vida, e ela, a honra. Por pertencer a um lugar social inferior, ele enfrentou o peso da pobreza, da cor, a dureza da lei. Por ser mulher, ela submeteu-se a ser
abandonada, ter um filho mestiço, sofrer a fúria da família, o
escândalo, o desprezo.

O escravo foi preso no Recife, acumulando ainda as acusações de mandingueiro e detentor de artes diabólicas, as quais teria usado para conquistar a moça, levando-a à gravidez e induzindo-a ao aborto. O ocorrido era grave. As Ordenações Filipinas – código jurídico então vigente em todo o
Império português – eram categóricas nestes casos: ao senhor cabia o direito de se decidir pela pena de morte para o escravo. Mas talvez Antônio fosse um feiticeiro, respeitado por negros e temido por brancos, e uma morte violenta poderia suscitar incômodas revoltas de cativos. Fosse por
isso ou mesmo pelo simples medo de sua magia, Domingos
preferiu denunciá-lo a assassiná-lo. O dilema foi então transferido para a Mesa do Desembargo do Paço: deveria ser aplicada a pena capital? A influenciar a decisão havia outro tipo de hierarquia social: a solidariedade masculina em casos sexuais. Os atos de Antônio podiam ser entendidos com um crime menor. No entanto, mesmo solidários, os juízes não poderiam admitir que denúncias de estupro praticado por negros escravos contra mulheres de “qualidade” se amiudassem. Pediram graça ao Rei, que determinou o encarceramento perpétuo na cadeia da Bahia.

Já o drama de Teresa de Jesus se entrelaçou aos de suas escravas Josefa e Caetana. Teresa foi moça com dote e casou-se em 1735 com Thomaz Vieira da Silva. Dezenove anos depois, dizia ser maltratada com pancadas. Acusava o
marido de havê-la levado de Pernambuco para Lisboa contra a vontade. Josefa e Caetana, por sua vez, haviam ganho alforria à época do matrimônio, mas continuaram servindo ao casal. Acusavam Thomaz de violências físicas, com ameaças de venda para o Maranhão. Recorriam ao Conselho
Ultramarino, afirmando serem livres e desejando continuar ao lado de Teresa.

O tempo, a solidão e a violência aproximaram essas três
mulheres. A intimidade do casal tornou-se também domínio das alforriadas, que passaram a interferir em questões delicadas envolvendo a condição de liberdade que haviam conquistado. Mas eram ameaçadas por Thomaz de serem reescravizadas. E Josefa e Caetana não tinham como sobreviver sozinhas. Não podiam optar pela completa liberdade. O que chama a atenção é o fato de, embora sendo mulheres negras e vivendo em Portugal, terem recorrido às instâncias legais, com a coragem de denunciar um homem
branco e de “qualidade” para afastar o fantasma da reescravização.

Em 1803, outro exemplo de cumplicidade: a fuga espetacular de Dona Ana Senhorinha teve repercussão nas vilas de Igarassu e Recife, e seria impossível sem a ajuda dos escravos. Ela era casada, filha de um viúvo que se dizia fidalgo, cavaleiro da Casa Real, capitão da primeira Companhia do Regimento Miliciano da Vila de Igarassu,chamado José Félix Bandeira Cezar de Mello. Com a morte da mãe, Ana Senhorinha foi educada no Recolhimento da Vila de Igarassu com todos os cuidados dedicados a uma moça de
“qualidade”, retirada dali só para o casamento. Este foi celebrado com Antonio da Silva Pereira, um parente seu. O consórcio andou mal, Antonio era um homem inquieto, sempre buscando amores e ausentando-se da casa. Tal situação levou Ana Senhorinha a optar por voltar ao Recolhimento,
acompanhada por sua filha.

Tranquilo com a proteção que o Recolhimento garantia à honra de sua filha e de sua neta, José Félix partiu para a Bahia para tratar de seus negócios. No retorno, o viúvo encontrou uma situação que qualificou de desgraçada. O
corregedor da Comarca de Pernambuco, João de Freitas de Albuquerque, atuava na Vila de Igarassu quando se envolveu afetivamente com Ana Senhorinha. É provável que tenham se conhecido na Igreja de São Cosme e Damião, quase colada ao Recolhimento. As mulheres recolhidas na casa não guardavam clausura completa, ainda mais Ana, que aguardava que o
marido mudasse de atitude e voltasse a desejá-la como esposa. A solidão e as carências a levaram a aceitar que João a cortejasse. Não sabemos se para João foi uma aventura ou uma grande paixão, mas o fato é que não poupou
esforços para tê-la consigo.

Vem de relato do próprio pai a versão de que o corregedor “enfrentou todas as forças e poderes”, lutando durante um ano para convencer sua filha, mas sem sucesso. Talvez ainsistência de João fosse uma forma que o viúvo encontrou para reduzir a culpa de Ana Senhorinha. Afinal, ela era casada, e as Ordenações Filipinas eram severas quanto ao adultério. Provavelmente era uma família de “menor qualidade” porque, se tivesse melhores condições, a morte do corregedor poderia ser uma saída para lavar a honra da família.

Vencidas as resistências de Ana, deu-se então a fuga. A operação foi organizada por um grupo que incluía dois pardos (um deles possivelmente uma escrava) e um padre. O percurso entre a vila de Igarassu e a do Recife aconteceu à noite, chegando Ana Senhorinha ao Porto das Canoas ao
amanhecer. Foi abrigada na casa de um padeiro que morava na Rua da Senzala, gente de cor, ligada à escravidão. Sabendo o corregedor da chegada de sua amada, achou sábio esperar até a noite, quando enfim a conduziu em cadeirinha para sua casa. Ana Senhorinha, estabelecida com sua escrava Rita, trazida do Recolhimento e que fora sua cúmplice na fuga,
concordou que João mandasse sequestrar mais duas escravas de seu pai com as quais tinha amizade. Esta atitude acirrou os ânimos, levando o pai de Ana a pleitear, diante do Rei, a apreensão das escravas e a prisão da filha, com posterior clausura forçada no Recolhimento de Nossa Senhora de
Conceição, em Olinda. Uma diligência em estilo policial cumpriu a ordem aprovada pelo Rei e a infeliz Ana Senhorinha viu-se enclausurada pela terceira vez – agora como castigo, por ser mulher e ter ousado fazer uma escolha.

Aconselhando, auxiliando em fugas ou envolvendo-se a ponto de gerarem filhos, os escravos participavam das questões mais íntimas e delicadas que permeavam a vida dos seus senhores. A sociedade escravista possibilitava múltiplas relações e negociações, desde que permanecesse clara, como
sempre permaneceu, a diferença entre “dominadores” e “dominados”.

Suely Creusa Cordeiro de Almeida é professora da
Universidade Federal Rural de Pernambuco e autora de O sexo
devoto: normatização e resistência feminina no Império
Português XVI-XVIII (UFPE, 2005) .

Saiba mais - Bibliografia
CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de . Liberdade: rotinas e
rupturas do escravismo Recife, 1822-1850 . Recife: Editora
Universitária/UFPE, 2002.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da
família brasileira sob o regime de economia patriarcal . 35ª ed.
Rio de Janeiro: Record, 1999.
SILVA, Gian Carlo de Melo. Um só corpo, uma só carne:
casamento, cotidiano e mestiçagem no Recife colonial
(1790-1800) . Recife: Editora Universitária/UFPE, 2010.

Fonte:
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/quarto-grande-e-senzala

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