sexta-feira, 12 de julho de 2013

Posições políticas


A exuberante fama de país sensual esconde em seus
bastidores desigualdades de raça, classe e gênero

María Elvira Díaz-Benítez

 Acima, capa da revista A maça, de 1929. Em sua obra, Gilberto Freyre via a miscigenação
 no Brasil como algo positivo e “bem dosado”, contrariando as teses científicas da época. (Fundação Biblioteca Nacional)

Uma das principais imagens que surgem quando se pensa no
Brasil é uma suposta sexualidade desenfreada. Aqui, o sexo e
as sexualidades teriam características próprias, excepcionais,
territórios de proezas e exotismo.

Este é um lado da moeda. Mas existe outro. A grande imagem
de liberação sexual oblitera uma realidade sensível: as
desigualdades na participação democrática efetiva. Hoje, o
país presencia um embate sociopolítico em que as bancadas
mais conservadoras, afiliadas a grupos religiosos, ganham
espaço considerável no Congresso, elevando seus gritos de
protesto contra direitos sexuais já conquistados e ameaçando
a laicidade do Estado. Se, por um lado, para o mundo, o Brasil
é um lugar de eterno verão, produtor de um carnaval lascivo,
de corpos e prazeres tropicais e com grande oferta de turismo
sexual, por outro, assistimos à eleição de um pastor para a
presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da
Câmara, apesar de suas posições polêmicas sobre
homossexuais, negros e os direitos das mulheres.

Se todo sexo é político, como afirmou a antropóloga norte-
americana Gayle Rubin, a sexualidade brasileira também não é
neutra. Ela está envolvida em relações de poder. Evoca
aqueles discursos do começo do século XX sobre raça,
mestiçagem e o futuro da nação, os métodos eugênicos, a
criação das patologias e dos pervertidos sexuais. Em poucas
palavras, sexualidade e raça se encontram intimamente
ligadas nos imaginários coletivos de brasilidade – que foram
construídos pela história, a medicina, a literatura, a
criminologia, a religião, a mídia, a pornografia – envolvendo
questões de classe e de gênero.

O Brasil é uma chave para se pensar na sexualização da raça
e na racialização do sexo. Foi o primeiro país na América
Latina a ter um movimento eugênico organizado. O termo
eugenia foi criado por Francis Galton, antropólogo,
matemático, geógrafo e médico inglês. Seria o estudo dos
agentes que podem melhorar ou degenerar as qualidades
raciais de uma população em gerações futuras. Inspirado na
obra maior de seu primo, o biólogo evolucionista Charles
Darwin, A origem das espécies (1859), Galton acreditava que
a espécie humana poderia ser melhorada evitando-se
cruzamentos indesejáveis, isto é, através de uma seleção
artificial. Para os cientistas e seguidores do movimento
eugenista europeu, o Brasil era considerado um país disgênico
(degenerado geneticamente) por excelência e seu futuro
estava ameaçado devido ao clima tropical e à população
altamente miscigenada.

Os eugenistas brasileiros preocupavam-se em aprimorar um
país cuja população era pobre e racialmente muito
heterogênea. O tema mobilizava as elites intelectuais. Nina
Rodrigues, desde finais do século XIX, já se mostrava cético
ante a possibilidade de alcançar uma unidade nacional via
mestiçagem. Apesar de seus méritos como médico e primeiro
pesquisador da influência africana no Brasil, para ele a
inferioridade do africano estava estabelecida fora de qualquer
dúvida científica. Menos pessimista, o antropólogo João
Batista de Lacerda, em 1911, vaticinou que em um período de
três gerações (100 anos) o país conseguiria produzir uma
população de fenótipo branco se continuasse a importar
europeus, miscigenando-os com os nativos de um modo “bem
dosado”. Para o historiador Oliveira Vianna, o “tipo
antropológico e racial brasileiro” era o resultado de uma
desordem étnica causada principalmente pelos “typos”
africanos. Na obra Casa Grande & Senzala (1933), Gilberto
Freyre contesta o argumento que Oliveira Vianna construiu em
Evolução do Povo Brasileiro (1923) . Para o sociólogo
pernambucano, a história social brasileira era o produto da
heterogeneidade e dos encontros inter-raciais que
“harmonicamente” ocorreram entre membros das diferentes
raças.

Como os seus críticos apontam, em sua apologia à
mestiçagem, Freyre, criou uma imagem da história escravista
na qual brancos e negros, escravos e amos e seus filhos
mulatos viviam em uma relação de fraternidade e intimidade.
O segredo para essa convivência fraternal seria a interação
sexual, que minguou o despotismo e a opressão
característicos do contexto escravista. Esse mito da
“escravidão cordial ou branda”, como é chamado pelos
críticos de Freyre, faz-se mais evidente com a figura do
mulato como elemento mediador. Sua pele mais clara lhe
permitiria entrar em um processo de mobilidade social,
transitando entre as raças e conciliando os extremos. A teoria
de Gilberto Freyre é criticada por não considerar que, num
contexto escravista, existe um exercício do poder que recai
sobre a sexualidade, em uma sociedade de relações de gênero
e de classe assimétricas.

Os programas eugenistas advogavam o controle da
sexualidade. Em defesa de uma sociedade sadia, em princípios
do século XX, empregaram-se políticas de controle dos
hábitos: repressão do ócio e da vadiagem, do comportamento
sexual de mulheres (reprodução, higiene, cuidado com
crianças) e dos homens mediante a religião, a medicina e a
política. O cuidado com a sexualidade masculina estava
diretamente relacionado com o aperfeiçoamento da população:
relacionar-se com prostitutas, adquirir doenças venéreas ou
ter sexo homoerótico eram vistos como causas de
degeneração. Ganharam importância visões e práticas
relacionadas ao nacionalismo, a modelos moralistas de
família, heterossexualidade, masculinidade, feminilidade e
também normalidade sexual. A função reprodutora do sexo era
a pedra institucional de uma ordem nacional excludente e
repressora.
Paralelamente a essas políticas de depuração racial e sexual,
os intelectuais criavam ideais de nação com base no encontro
sexual inter-racial. Se os mulatos eram figuras emblemáticas,
o que dizer especificamente das mulatas?
A figura da mulata encarna o corpo e a alma do desejo. E foi
assim que se converteu em símbolo nacional, construído pela
literatura, a medicina, o carnaval e, mais recentemente, pelas
agências de turismo e os canais televisivos. A categoria da
mulata, como disse a antropóloga Mariza Corrêa, “pode
contribuir para questionarmos nossa forma habitual de tratar
seja das relações de raça, seja das relações de gênero”, mas
também as relações de classe, pois essa mulata faz apologia
ao mundo dos pobres – os quais, segundo o imaginário social,
vivem mais próximos da natureza e dos instintos. A mulata é,
desde o começo do século XX e até hoje, o fio condutor de um
ideário nacional que racializa os desejos sexuais. Mais
recentemente, o mercado do sexo (pornografia, prostituição e
turismo) inventou outra figura racial e de gênero que encarna
em seu corpo símbolos de classe e de nação: a travesti .
Em diversas legendas de filmes pornográficos, a pobreza, a
nacionalidade e o gênero das travestis são vendidos como
algo prodigioso, exótico e simultaneamente esdrúxulo. O
contrário também acontece: o glamour de algumas travestis
ou de transexuais destacadas – como a pioneira Roberta
Close – é ofertado como sinônimo da abertura sexual dos
brasileiros e de uma sociedade moderna e bonita, porém,
branca.

No Ocidente, historicamente tem se privilegiado o branco e o
heterossexual como paradigmas legítimos e modelos morais
que colocam o outro como subalterno. Daí que exista um
vínculo entre heterossexismo e racismo. Ambos são
dispositivos de opressão que existem em uma relação e que
permitem, por exemplo, pensar que um homem negro é
obrigatoriamente macho e que nos circuitos homossexuais a
branquidade é o padrão de beleza hegemônico. O dispositivo
permite também que movimentos de esquerda, como o negro
e o proletário, mesmo sendo revolucionários, conservem em
seus valores concepções homofóbicas, machistas e misóginas,
e que as políticas LGBT nem sempre deem atenção aos
fatores classe e raça, colocando pessoas socialmente diversas
em um mesmo patamar.

Estas são as contradições de um país onde a sexualidade,
vista de fora como libertária, na verdade se entrecruza com
diversas formas de desigualdade.

María Elvira Díaz-Benítez é professora adjunta no Programa
de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional-
UFRJ e autora do livro Nas redes do sexo: os bastidores do
pornô brasileiro (Zahar, 2010).

Saiba mais - Bibliografia

CORRÊA, Mariza. “Sobre a invenção da mulata”. Cadernos
PAGU, n. 6-7, p.35-50, 1996.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Formação da
família brasileira sob o regime da economia patriarcal . Rio de
Janeiro: José Olympio, 1973.
STEPAN, Nancy. “Eugenia no Brasil 1917-1940”. In:
HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego (orgs.). Saúde e Doença
na América Latina e Caribe . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
2004.
Fonte:

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